O mundo que o mar conta

O mar infatigável diante da praia
continua a desfazer
a areia em areia
e os seus grãos noutros grãos
mais minúsculos.

E cada vez mais pequenos
no correr dos dias
contam histórias mais antigas
e complexas
descrevendo
em cada um
o mundo todo.

Empedernido calor

Zumbem abelhas
desatentas
suspensas na parede do calor.
Como que respiram junto às pedras.

Olfato. Empedernido calor.

No livro dos verões passados
Tempo que não volta
Mesmo nas voltas
Do voo
Das incansáveis dunas.

(foto: Elena Yasinovo)

Pátio fresco


O antigo sol franzido
E o perfume da noite e
Do musgo

E o que fomos.

Posto isto

Fica a alma à escuta
Junto à esquina e ao destino
Encomendando
O chão onde
Reinará
No labirinto das memórias
Como num pátio vazio.

O Nilo regozija-se


Oh Egípcios,
Tereis de repetir todos os anos
Eternamente
A agrimensura dos vossos campos
Enquanto eu transbordar com as chuvas
E não me sustendo no meu leito
Invadir embriagado as vossas culturas.

A vossa parca aritmética
Apesar de sábia
Não contempla
Os meus orgasmos de Inverno.

Antiga voz


Antiga voz
Soletra a atenção
Com que a escrita mais antiga dos navios
Combina as tempestades
Onde as águias sobrevoam
O céu no êxtase azul que clama.
Eis-me chegado ao palácio
Do meio-dia do meu inverno
E sobre o búzio volto a escutar o mar
E as suas danças noturnas.

Austeridade ou fado da poupança


Poupa na honra
Que é mais uma despesa
Os melhores negócios
Fazem-se debaixo da mesa.
Poupa nas palavras
Finge-te mudo
Cruza os braços
Faz cara de Entrudo.
Esquece a família
Que é só inveja
Fecha-te no quarto
Para que ninguém te veja.
Não queiras mais filhos
Enforca o maltês
Poupa o corpo da tua esposa
Para o venderes outra vez.
Corta no almoço
Elimina a bica
Não convides ninguém p’ra mesa
Que mais barato te fica.
Não poupes na idade
Que isso não vai custar
E um corpo velho
Dá para conservar.
Corta na pele
Deixa-te sangrar
A carne seca
Ninguém a quer levar.
Corta na educação
Nas contas de somar
Um analfabeto
Também sabe poupar.
Poupa na farmácia
Evita os remédios
Deus também opera
Não leva nada por isso
Nem há filas de espera.
E não te apresenta a conta
E não te exige dinheiro
Nem te dá esperanças
E faz de cangalheiro.
Não sejas expansivo
Nos gestos que fazes
Não faças guerras
Porque são caras as pazes.
Não ultrapasses a medida
De um copo por dia
É a dose mais que certa
Da desnecessária alegria.

Mas não enroles a bandeira
Nem poupes na luta
Quando falta de tudo
Sobram filhos da puta!